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Entrevista com Mú Carvalho

Foto do escritor: Renato MoogRenato Moog

Atualizado: 21 de abr. de 2021



Em um dia nublado, caminhava à tarde pela Rua Direita, Centro de São Paulo. Faz alguns anos. Estava triste, chateado, algo me incomodava e queria logo chegar em casa. Não obstante o caos urbano, pessoas indo e vindo e sons variados chegando aos meus ouvidos de todas as partes, comecei a prestar atenção em uma canção cuja intensidade de volume crescia à medida que eu continuava meus passos, até que finalmente consegui identificar que se tratava de "Abri a Porta", composição de Dominguinhos e Gilberto Gil, gravada pela banda "A Cor do Som" no álbum "Frutificar", de 1979. 

"Abri a porta Apareci A mais bonita Sorriu pra mim
Naquele instante Me convenci Que o bom da vida Vai prosseguir Vai prosseguir Vai dar pra lá do céu azul Onde eu não sei Lá onde a lei seja o amor (...)"

Esta é uma das músicas que tem o condão de elevar meu estado de espírito. Como em um passe de mágica, era como se o sol tivesse surgido e o predomínio cinza do ambiente tivesse se convertido em um mundo de cores vivas.

A música tem o poder de trazer lembranças que a memória deixou escapar, e mais que isso, não raras as vezes é capaz de transportar-nos para outros estágios de sentimentos. Voltando àquele dia, a canção vinha de uma loja de discos, algo raro hoje em dia, e sem hesitar solicitei a um dos vendedores o álbum que estava tocando, e, assim, recebi um compact disc com o nome "chill: brazil". Vi que se tratava de uma coletânea de músicas escolhidas especialmente pelo lendário Marcos Valle, mais de trinta, em verdade, incluindo uma do próprio músico, além de várias outras brasileiras. Continuei minha caminhada, porém, agora com o disco em minha companhia. Muito tempo depois, levei-o comigo para a casa dos meus pais, em Itatiba, interior de São Paulo. Meu plano era mostrar a maravilha ao meu cunhado Cyril Aime, casado com minha irmã Cibele Maciet, ambos curtindo férias no Brasil. Ele, francês e fã incondicional de música brasileira, ficou muito animado quando ouviu de mim que tinha algo que ele iria gostar muito, e assim que entreguei o CD, ele olhou a capa e imediatamente me convidou para ouvirmos com calma todas as músicas, sem pausas. Perguntei, ao final da audição quais ele mais tinha gostado, e ouvi esta resposta: "é difícil escolher, gostei de todas e já conhecia a grande maioria, sobre as desconhecidas, gostei muito de 'Maria Fumaça' pela sua energia, 'Guanabara' pela identidade clara com o Rio de Janeiro, e 'Abri a Porta' pela cena leve e otimista que me traz".

Fiquei satisfeito sobre a inclusão de "Abri a Porta" na lista de Cyril, talvez porque a impressão dele sobre a música seja análoga à minha. Sobre o álbum? claro! não tenho mais, hoje ele está na França, um presente meu.

"A Cor do Som" é uma banda que sempre flertou com vários estilos musicais, dentre os quais a MPB, o Rock, o Jazz, e o Chorinho. Seus músicos são fantásticos, e um em especial sempre foi um dos meus pontos de referência: Maurício Magalhães de Carvalho, ou simplesmente Mú Carvalho. Criado em Ipanema, Rio de Janeiro, é compositor, instrumentista, pianista, tecladista, arranjador e produtor musical. Em 2012, recebeu, da Berklee College of Music (Boston, EUA) certificado de especialista em orquestração para cinema e TV.

Quando recentemente me encontrei com Mú Carvalho, disse a ele sobre minha admiração pelo seu modo de tocar piano, principalmente como trabalha com as nuances de dinâmicas, com o staccato, com appoggiaturas e também com o pedal de sustain.  A música "Frutificar" é um grande exemplo, onde o músico reuniu de forma clara suas técnicas refinadas. Não perdi a oportunidade, também, de dizer que uma frase de piano dele mudou minha vida musical ao gerar um despertar para o mundo do jazz e do blues, de tal sorte que me lancei ávido à missão de entender e aprender improvisos e técnicas próprias do jazz e blues, como, por exemplo, as blue notes, além das harmonias e escalas inerentes. Esta frase musical está contida na música "Menino Deus" (Caetano Veloso), do álbum "Magia Tropical" (1982), incluída na trilha sonora da novela da TV Globo "Final Feliz", de 1982. Ouvi a primeira vez esta música com quinze anos.  Na época, meus estudos de piano eram restritos à música erudita.

Sempre simpático e solícito, o artista me contou sobre sua carreira musical, desde o início, sobre suas composições, influências, estudos e trabalhos.

  • Como foi sua formação musical?

Minha mãe era pianista, estudou muito, tinha uma ótima leitura. Ficamos um tempo sem piano em casa, mas um dia meu pai comprou de presente pra minha mãe um piano de armário inglês muito bom, o Kemble. Foi amor à primeira vista. Dadi, meu irmão, já tocava baixo em uma banda de rock, mas até os quinze anos, quando chegou o piano, eu era artista plástico. Pintava telas com tinta óleo e gouache em papel. Minha relação com o piano foi muito intensa logo de cara. Acho que comecei a tocar ao mesmo tempo que comecei a compor. Via minha mãe tocando Nazareth, Bach, Chopin e tentava imitá-la, meio que de ouvido e meio que de olho. Acho que puxei minha avó Alice, mãe da minha mãe, que tocava de ouvido, não lia nada mas fazia música no cinema Central de Juiz de Fora. Muitos anos depois gravei um CD "O Pianista do Cinema Mudo" dedicado a minha mãe e à vovó Alice, e a mim mesmo, afinal, porque acabei trabalhando com música para dramaturgia anos depois, com cinema e novelas da TV Globo.

Um dia minha mãe convidou seu primo Homero de Magalhães, um grande pianista erudito, intérprete de Beethoven e Villa-Lobos. Homero me viu tocando e ficou animado em me dar aula, achou que eu tinha um bom potencial e, apesar de eu já estar tocando com uma certa fluência naquela altura, com improvisos (coisa que não era a "praia" dele), e já com composições minhas, choros modernos e baladas progressivas, ele viu que se eu estudasse eu passaria para um outro "level do game". E assim foi. Homero vinha na nossa casa uma vez por semana, e me dava aulas de técnicas.  Passei a frequentar também a Pro Arte, uma escola de música importante no Rio naquela época, em que o Homero era também Diretor.

Depois vieram os festivais do Colégio Rio de Janeiro em Ipanema, onde fiquei amigo de muita gente que partiu para a carreira musical, Claudio Nucci, Claudinho Infante (baterista), Zé Luis (sax), Zé Renato e Lobão. Minha primeira banda foi o Semente, com o Nucci, o Claudinho Infante e Zé Luiz. Com dezessete anos fui tocar com o Jorge Ben. O Dadi, meu irmão, já tocava com ele e rolou uma vaga de pianista, e lá fui eu.

O Dadi era uma espécie de ídolo pra mim. Eu ficava vendo os ensaios dos "The Goofies", sua primeira banda de rock, quando eu ainda era pintor. Quando o Moraes Moreira saiu dos Novos baianos, gravou seu primeiro disco com o Dadi, o Gustavo (baterista da Cor), e trouxe o Armandinho da Bahia. Moraes queria um piano numa música desse disco e me convidou. Logo depois começamos a fazer shows pelo Brasil. A banda era eu, Dadi, Gustavo e Armandinho. Estava formada "A Cor do Som". Daí não paramos mais, assinamos com a WEA e tudo foi acontecendo muito rápido. Moraes é um parceiro querido, e compusemos musicas importantes, hits que tocam até hoje, como "Semente do Amor" e "Swingue Menina". Sobre o Jorge Ben, tenho uma grande admiração, compõe músicas simples mas tudo muito bem resolvido, hit maker, tanto ele como o Moraes possuem uma originalidade forte, coisa que para mim é a mais importante num compositor/intérprete. O Zé Renato é um amigo querido, começamos juntos nos festivais do colégio e ele já era um talento, melodista sofisticado, portador de uma voz linda.

  • Durante todo este tempo de atividade intensa, os estudos continuaram?

Só voltei a estudar música formalmente em 2007 com meu mestre Vittor Santos. Aprendi a escrever pra orquestra com ele e isso foi fundamental pro meu trabalho de música dramatúrgica. Antes um pouco deu vontade de melhorar como pianista e tive algumas aulas com o Dario Galante, um pianista de jazz italiano, improvisador maravilhoso, na onda do bebop, Monk e afins. Tive também algumas aulas informais com o Luizinho Eça.

  • Ídolos?

Egberto Gismonti, Luiz Eça, Chick Corea, Keith Jarrett, Stevie Wonder e Cory Henry. 

  • E os teclados eletrônicos, como conheceu?

Eu comprava aqueles discos do Yes, ELP, Pink Floyd, os eletrônicos Tangerine Dream, Kraftwerk.  Eu era muito ligado naquela onda do rock progressivo. O Minimoog foi o primeiro synth que comprei. Acho que em 1976, quase ninguém tinha por aqui. Meu amigo Luiz Paulo Simas da banda Vímana tinha vários teclados já nessa época, e aos poucos eu fui conseguindo comprar todos aqueles, o Clavinet, o Fender Rhodes, Wurlitzer.  Comprei um Hammond Porta B com Leslie em 1978, quando fui à Nova Iorque, e eles me mandaram de navio. Depois comprei um Arp Odyssey, um Pro One da Seq Circuits, um Prophet V e outro Minimoog, porque eu queria dar um jeito de fazer um teclado pra pendurar como uma guitarra, tinha visto o Jan Hammer usando um e pedi pro Claudio Cesar Dias Baptista que era um “Prof Pardal” da eletrônica, e ele separou o teclado do painel, fez um multicabo e ainda pintou de vermelho. Foi maravilhoso isso.

  • Conte um pouco mais sobre esta história do hammond, foi enviado de navio?

Pois é. Eu tinha vinte anos e estava em Montreux tocando com a Cor e com o Gilberto Gil. Foram dois shows com a Cor e quatro com Gil. Ganhei um total de US4.200,00 e resolvemos ir pra NY. Eu, Gustavo, Ary, Pepeu e Jorginho Gomes. Cheguei lá, e logo no dia seguinte fui à loja de instrumentos Alex Music (nem existe mais) e bati os olhos no Hammond com a Leslie. Era aquele modelo Porta B que tinha os pés de ferro. Perguntei o preço, e era US4.000. Naquela altura era tudo que eu tinha. Nem existia cartão de credito internacional. Mas não tive dúvida. Perguntei ao vendedor se ele entregaria no Brasil, ele disse que sim, e comprei. Fiquei uma semana sem grana em NY. Foi punk!

  • Quais os seus prediletos?

O Rhodes, o B3 e o Mini Moog são os clássicos. Gosto muito do clavinet também e claro, algum synth polifônico tem que ter no setup. Gostava do som do Oberheim.  O Juno 106 tenho vontade de comprar um.

  • Ainda sobre Montreux, deve ter marcado sua vida, não é mesmo?

Bem, o show do Gil foi uma coisa que até hoje parece um sonho para mim. Tivemos apenas dois ensaios lá, mesmo porque o Gil morava em Los Angeles naquela época e a gente se encontrou em Montreux dois dias antes do show. Outra coisa bacana foi encontrar o Patrick Moraz (YES) lá. Eu já o tinha conhecido no Rio. Ele tinha casado com uma brasileira e foi ao show de estréia da Cor do Som no Teatro Tereza Rachel. Foi emocionante porque o Moraz era um ídolo. Ele me deu a maior força.  Eu tinha dezenove anos e ele disse que eu seria um grande músico, que o tempo iria confirmar isso, e no ano seguinte estava ele lá, no backstage do Montreux Jazz Festival. Aí ele voltou com aquele assunto, tipo “lembra o que eu te falei no ano passado no show da Cor do Som? Olha aí você tocando num dos palcos mais importantes do mundo”. Foi demais isso!

  • Como foi tocar com a Legião Urbana?

Foi muito bacana. Platéias incríveis, shows para milhares de pessoas.

  • Como é o seu trabalho na Rede Globo? 

Gosto muito de fazer música pra dramaturgia. Gosto de estúdio, de compor. Acho que sou muito mais compositor do que instrumentista. Como pianista tenho muito que melhorar ainda. Acho que tenho uma onda boa quando toco, tenho uma certa personalidade, gosto disso, mas sei que preciso estudar mais para chegar aonde eu gostaria. Mas na composição eu me sinto muito a vontade, e na Globo eu tenho um leque enorme de universos da música. E tenho verba para gravar com orquestra, isso é maravilhoso.

  • Quais suas composições prediletas? 

Tenho um carinho especial por “Frutificar”. É uma música que contagia a plateia de uma forma muito forte. E por ser instrumental isso fica mais interessante ainda. Apanhei-te Minimoog também gosto muito, a gente não tem tocado nos shows da Cor, mas quando eu faço meus piano solos sempre toco. Bruno e Daniel também gosto, é um choro moderno, entra naquela minha série de choros, que acho bem relevante, porque não tem muita gente dando um sangue novo ao choro. O Egberto andou fazendo isso, o Hermeto também, mas a galera do choro meio que ficou na virada do século dezenove paro o século vinte (risos).

  • Sobre seus álbuns solos, predileção por alguns?

Gosto do “Pianista do Cinema Mudo” e do “Óleo Sobre Tela”. Ambos autorais mas no “Elétrico Nazareth” tem a minha caneta de arranjador, deu para aplicar muita coisa que aprendi com o Vittor Santos. Técnicas de rearmonização com tríades estranhas, dominantes estendidos e estrutura constante, tem tudo alí. Virei de cabeça pra baixo as músicas do Ernesto Nazareth, e tenho a impressão de que ele iria gostar do que eu fiz. Ele era muito moderno pra época e estava antenado em tudo que se fazia de música.

  • A música "Sapato Velho", grande hit na interpretação do grupo "Roupa Nova", também gravada pelo "14 Bis", parceria sua com Paulinho Tapajós e Claudio Nucci, composta em 1976, nunca foi gravada pela banda "A Cor do Som", existe alguma razão especial?

Essa é daquelas músicas que eu faço que não é para o meu bico (gargalhadas). É que a minha voz tem limitações, não sou um intérprete, um cantor propriamente dito, apenas canto algumas músicas que eu componho, e mesmo assim, algumas como "Sapato Velho" eu saco na hora que não é para mim.

  • Para encerrar, algum conselho que você gostaria de dar a quem quer iniciar a vida musical?

Acho que ouvir muita coisa. Ouvir a música dos anos 70, ouvir os compositores eruditos, ouvir a black music americana, os jazzistas, e se dedicar muito ao instrumento sempre.

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