De minha cadeira dobrável era possível olhar de frente para a pequena costa de Barra do Sahy, uma bela praia situada no litoral norte de São Paulo, mais especificamente no Município de São Sebastião. Assim que cheguei de barco à pequena ilha denominada "Fuga das Ilhas", em um dia ensolarado, permaneci por alguns minutos observando o mar cor azul turquesa e a areia dourada da praia, e justamente por estar em uma ilha, inesperadamente, confesso, lembrei de uma aula sobre o princípio da fragmentariedade: ramo do direito penal que se ocupa somente de uma pequena parte de bens jurídicos tutelados pelo ordenamento legal, como se o gigantesco oceano de irrelevância factual fosse ponteado por pequenas ilhas de tipicidade.
Enquanto puxava da memória os desdobramentos dessa ideia, comecei a ouvir uma música que me desviou a atenção, a qual vinha de uma embarcação ancorada não muito longe dali, e logo reconheci, "Three Little Birds", de Bob Marley & The Wailers. A partir de então, imediatamente conduzi meus pensamentos para outra ideia, dessa vez relacionada ao campo da música: assim como naquele princípio do Direito Penal, essa forma de arte se ocupa somente de uma parte dos sons produzidos, seja ou não pelo homem, e, assim, por analogia, de tal sorte que o gigantesco oceano de sonoridades existentes em nosso mundo excepciona-se por pequenas ilhas reunidas em alguma forma de tempo, com características de melodia e ritmo, e talvez harmonia. Algo extraordinário nasce com essa receita, que nos afeta decisivamente. A combinação de sons que agrada ao ouvido nos traz a magia. Um simples ruído, independentemente se proveniente de um instrumento musical convencional, qualquer um, pode ser um componente musical, como o originado de um trovão, ou o quebrar das ondas do mar, ou de um relógio analógico em funcionamento, mas dependerá sempre da vontade do compositor da inclusão em algum tema musical, de modo que o ruído recortado da realidade passe a soar de forma organizada, e, assim, tornar-se música pela intenção do artista.
Nesse ponto, é importante não perder de vista que a música não tem o mesmo sentido para todos que a ouvem, e a razão é que cada um de nós utilizamos filtros próprios para percebê-la e conhecê-la, que são nossas impressões sensoriais, isto é, a emotividade, a imaginação, lembranças, as raízes culturais, enfim, experiências adquiridas ao longo do tempo perante o mundo em que nos rodeia e que formam o arcabouço de nossa razão, como o filósofo Immanuel Kant denominou de cognição a posteriori em seu livro "Crítica da Razão Pura".
Mais especificamente em relação ao músico, aprofundando um pouco mais, passo a citar a percepção musical como uma habilidade das mais importantes, que o habilita a ouvir uma música e a reproduzi-la sem precisar de leitura, seja de partitura, seja de cifras, enfim, sem qualquer apoio a não ser sua própria consciência viva e apta, autorizando, outrossim, improvisações. Quem não se lembra da cena do filme "Amadeus" (Milos Forman), em que W. A. Mozart ouve a música composta em sua homenagem por Antonio Salieri, e logo em seguida a reproduz fielmente em um cravo, inclusive improvisando sobre o tema principal, deixando todos na sala admirados? Assunto para a neurociência? talvez sim, de qualquer modo, o que vimos foi a notável capacidade de Mozart de perceber e identificar as ondas sonoras como parte da linguagem musical. O segredo para a grande maioria das pessoas reside em treinar a nova habilidade, como quase tudo na vida, levando a repetição ao sucesso. Provavelmente para Mozart o caminho tenha sido mais fácil e rápido. Escutar músicas com concentração, prestando atenção em seus elementos é a melhor estratégia, vale dizer, ritmo, harmonia e melodia, memorizando cada passo, de modo a guardar as frequências dos sons e identificá-los como notas musicais, suas alturas e intervalos.
Conheço músicos excepcionais que não leem partituras, então, a pergunta é como conseguem reproduzir uma música? e a resposta já foi dada, claro: percepção musical, que tenho treinado desde muito menino, e meu incentivo partiu da dificuldade de encontrar transcrições fiéis de músicas que gostava, as quais não foram originalmente escritas em partitura pelo próprio compositor (a primeira que consegui com êxito aprender foi "Song for Guy", de Elton John), e minha intenção desde sempre foi muito mais de aprender a "tocar de ouvido" do que de improvisar, embora essa última possibilidade seja consequência da primeira. Mas a verdade é que ainda estou longe de ter uma excelente percepção musical, embora eu já consiga ótimos resultados, o que só me incentiva a aprender mais e mais.
Mas, voltando à minha cadeira dobrável, ouço ao longe o nosso barqueiro nos convidando a retornar ao continente, e, assim, deixo a ilha que me trouxe durante algum tempo as características de melodia e ritmo das poucas mas intensas sonoridades, e, sem dúvida, a harmonia com a natureza plena.
Eu acredito que não foi o treinamento que criou um Mozart ou um Beethoven e tantos outros gênios da musica instrumental , tem que nascer com a musica já instalada no cérebro.