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Imersão

Atualizado: 21 de abr. de 2021


Cada um de nós nutre preferências por determinados estilos e técnicas, por modos interpretativos diante da infinita gama de características do universo musical. Quando ouvi pela primeira vez "One for the Vine", do álbum "Wind & Wuthering", que Tony Banks, integrante da banda Genesis, trouxe ao mundo, eu me identifiquei tanto com a música que não conseguia parar de ouvi-la, encantado com a estrutura harmônica, com os encadeamentos de acordes, com a melodia de voz, com as respirações que meticulosamente foram pensadas e estrategicamente dispostas, com a interpretação de cada músico, com cada real e atrativo pulsar de ritmo e vicissitudes incessantes de intensidades. Esta adoração extrema por uma música não raras as vezes é, no meu caso, precedida por um sentimento único de estupefação, que me encaminha a ouvir repetidamente a mesma música intensamente, por dias, as vezes por meses. No campo extremo, algumas músicas jamais deixaram de fazer parte do meu repertório de ouvinte, e, claro, cito sem muito pensar os quatro movimento da Nona Sinfonia de L. V. Beethoven, os quais regularmente ouço, sempre extasiado.

Cientes ou não, por outro lado, a música que fazemos e sua mensagem escrita ou sensitiva tem o condão de impactar diretamente os ouvintes, de maneira poderosa e direta, principalmente se forem de tenra idade, extremamente atentos e maleáveis, mentes ainda em formação, muitos deles ansiosos por assumirem para si, como uma mensagem cifrada, a magia que uma simples canção pode conter. Lembro-me de assistir certa vez um documentário sobre john Lennon, no qual, em um momento marcante, um jovem invade a propriedade do ídolo, e ao ser recebido pelo próprio, diz a ele que determinada letra foi composta diretamente para si, porque ali tudo se encaixava, e sua vida então fazia sentido. O ex Beatle, sem parcimônia, no intuito de desiludir o fã, disse sem rodeios que não dirigiu aquele texto ao invasor, e que eram apenas palavras aleatórias, jogadas em um mesmo texto, que de certo modo faziam sentido. Mesmo ao ouvir esta dura revelação, o jovem relutou em acreditar no próprio compositor, relutou em aceitar a verdade.

A música tem relação direta com nossas frustrações, com nossos anseios, com nossos modos culturais de enxergar a vida e de nos relacionarmos com outras pessoas. Roger Waters, dentre outros, abordou o tema ao escrever a genial obra "Pink Floyd The Wall", dirigida por Alan Parker, cujo personagem central viveu desde a infância frustrações e sentimentos humilhantes, e, assim, atormentado, ao se isolar do mundo que o cercava, erigiu um muro imaginário e se tornou um Ditador extremista, com forte carga segregacionista e preconceituosa. Quem nunca ouviu dizer que no palco algumas pessoas se transformam? Não é privilégio de músicos, claro, atores também, oradores idem. Ser o centro das atenções em determinada célula traz inevitável sensação de poder, e não obstante passados anos após a primeira edição do "Espírito das Leis" de Montesquieu, ainda se pode verificar o arbítrio mediante o abuso do poder concentrado, que, de certa forma, e não raras as vezes é apenas reflexo das frustrações pessoais, que Waters centrou em seu roteiro.

Eu acredito que aqueles que realmente amam e se importam com a música são os que conseguem se emocionar com ela, e isto, de fato, não é tão simples como parece. Não canso de citar o grande divisor de águas de minha vida de músico: Luciano Alves. Em meados da década de 1990 me fez enxergar com a sua interpretação, em um show de Pepeu Gomes, o real significado da expressão "alma musical". Cada nota que soava do hammond ou do piano do tecladista, naquela tarde, tinham suas próprias cores, vivas, limpas, diretas. Tudo tinha um propósito, tudo fazia sentido, desde a música mais simples, até a mais complexa. Eu estava recebendo fortes vibrações de uma arte que não se via todos os dias, e estava agradecido demais por aquilo tudo. Era atingido por enorme gama sonora, como se fossem feixes de luzes direcionadas ao meu coração. A partir daquele momento, resolvi repensar toda a minha curta carreira, até então, e comecei minha busca incessante pelo caminho da inspiração. Quem nunca se perguntou como uma mesma música interpretada por diversos músicos pode ter efeitos diferentes em um mesmo ouvinte?

A consciência mais abrangente de como a forma individual de arte faz a diferença para as pessoas, é uma ferramenta das mais poderosas para se trabalhar com a inspiração, se, é claro, o músico não resolve se isolar e fazer música apenas para si. Certa vez ouvi de uma pessoa que assistia uma apresentação musical na qual eu participava, anos atrás, que parecia que a música que eu tocava era composta por mim, embora fosse claro para nós dois que era um clássico do rock, e que nem de perto eu tinha participação na criação daquela obra. Passei alguns dias com aquela conversa em minha mente, e não encontrava resposta para a minha indagação pessoal: qual a função do intérprete? Desde criança, quando estudava alguma peça de algum compositor erudito, imaginava como ele próprio tocava, e, seguindo minha intuição, tentava reproduzir fielmente. Percebia também, ainda menino, que Claudio Arrau, Nelson Freire e Arthur Moreira Lima tocavam o mesmo prelúdio de F. Chopin de modos diferentes, como isso era possível? a música não tinha sido escrita em partitura com todas as indicações para execução e interpretação? como podiam tocar diferente? a conclusão minha era singela, na vã tentativa de justificar a divergência entre os pianistas, entendia que que o fio condutor era o mesmo, isto é, de que estes músicos também não conviveram ou ouviram o compositor polonês, logo, interpretavam aos seus modos. Se ninguém conhecia o jeito correto de tocar, então, claro, tocavam do modo como entendiam correto. No entanto, hoje tenho outra percepção. Acredito que o músico é um ator que, ao interpretar determinado papel, seja ou não por ele escrito, deve ter a liberdade de agir de acordo com sua alma, com base, claro, na estrutura deixada.

O músico é um intérprete, seja ou não de sua própria música. Significa que ainda que se toque exatamente as mesmas notas escritas pelo compositor, seguindo a orientação de utilizar o mesmo instrumento, inevitavelmente modos diferentes de interpretação hão de surgir, porque como já consignei acima, a música tem relação direta com nossas frustrações, com nossos anseios, com nossos modos culturais de enxergar a vida e de nos relacionarmos com outras pessoas. Em outras palavras, a experiência é o vetor transformador, que Kant denominou como o conhecimento a posteriori em sua "Crítica da Razão Pura", que nos impulsiona aos subjetivismos tão necessários para produção desta fabulosa forma de arte.

O que não é a música senão a própria manifestação íntima do artista?

Não acredito em música produzida com base apenas na intuição, porque ela - música - é fruto da nossa experiência adquirida com base em nossos sentidos, que nos conectam com o mundo exterior.

Certa vez assisti ao vivo Xandra Joplin e banda em uma casa de shows, e me apaixonei imediatamente pela música que eles fizeram. Depois daquele show voltei minhas atenções imediatamente para as músicas de Janis Joplin, e era lembrado de forma jocosa por minha mulher de que eu jamais gostei daquelas músicas da cantora norte americana de blues. A verdade é que nunca havia me interessado pela música de Joplin, mesmo ouvindo muitas e muitas vezes em casa (minha mulher sempre ouviu), pois não tinha despertado a emoção suficiente. O que me fez mudar? respondo sem pensar duas vezes: a música maravilhosa de Xandra Joplin e banda. A arte deles, interpretando canções, me atingiu plenamente, fazendo não apenas eu, mas todos ali presentes se emocionarem, sorrirem, gritarem, chorarem. Vi de perto tudo isso como se fosse uma grande catarse que nos libertava das ligações com este mundo, transportando-nos para outro, muito mais vivo e emocional.

Tenho um grande amigo, Cassiano MusicMan, que sempre diz que o músico escolheu viver a vida no modo hard, como se fosse um jogo de videogame no qual o modo mais difícil de sobrevivência é o selecionado. Não quero de fato discordar, todavia, se assim for, por outro lado, tenho a dizer que o músico é aquele que tem o poder de trazer à vida colorido diferente, e, é claro, diante de tal, é imbuído de enorme responsabilidade de ser autêntico, sincero. Não se tolera aqui o fingimento, a dissimulação, porque o que se está a transmitir é a música, poderosa forma de comunicação que possui magia de invocar risos e choros, celebrações, vivacidades, recordações de lugares e pessoas como se um bom perfume fosse, momentos já vividos e que não voltam mais.


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