Eu invariavelmente gravo seleções de músicas para ouvir no meu carro. Antes em fitas no formato K7, depois em compacts discs, e ultimamente em pen drives. As inovações tecnológicas alteraram drasticamente o modo de se ouvir música: antes era possível gravar em cada fita K7 apenas algumas delas, geralmente a quantidade de um disco de vinil ou um pouco mais, o advento do compact disc (CD) ampliou um pouco mais as possibilidades. Atualmente, com um simples pen drive, menor até mesmo que uma moeda, é possível gravar consideravelmente muito mais músicas do que em um CD, e melhor ainda, a organização em pastas facilitou o acesso.
Há cerca de três anos, voltando de uma turnê musical cansativa, depois de passar mais de vinte horas sentado em um banco de uma Van pelas estradas do sul do país, e já em São Paulo, entrei no meu carro em direção à minha casa. Era um domingo de manhã. Liguei o som do veículo e acionei o sistema USB, e ao buscar as pastas do pen drive, encontrei ali uma suíte que já fazia um bom tempo que não ouvia: Rick Wakeman e sua "Viagem ao Centro da Terra". Trata-se do terceiro álbum dele, lançado em 1974 com foco na novela "Viagem ao Centro da Terra" do escritor francês Júlio Verne, cuja gravação foi realizada ao vivo no Royal Festival Hall, em Londres, Inglaterra, no dia 18 de janeiro de 1974, com o Ronnie Lane's Mobile Studio.
Este álbum sempre me fascinou, desde criança quando ouvi pela primeira vez, ainda com poucos meses de aulas de piano. Rick Wakeman é um exímio tecladista, e o que sempre gostei nele foi a capacidade de fundir a música contemporânea popular (rock, blues, funk, principalmente), com a música erudita. Algo interessante é que alguns músicos levam consigo e por toda a carreira um instrumento que se torna emblemático, é assim como Stevie Wonder e seu clavinet Hohner, foi assim com Jon Lord e o hammond, e assim também é com Wakeman e o minimoog D, que, a propósito, declarou em uma entrevista recente que é proprietário de nove exemplares.
Assim que a música preencheu os espaços do interior do meu veículo, e eu já tinha ganhado o asfalto da Avenida 23 de maio, resolvi analisar a música de modo diferente do que comumente faço, e passei a observar as formas de compasso, os instrumentos utilizados, o tom, formação do coral, as melodias e timbres do minimoog D, as variações rítmicas da guitarra do piano rhodes e do clavinet. Em um determinado momento surgiu uma pergunta em minha mente: seria possível criar uma banda para reproduzir tudo em palcos, fosse maiores (teatros), até menores (bares)? como reproduzir fielmente a orquestra e o coral, bem como as partes tocadas por Wakeman? Com transcrições eu poderia ter em partituras diante dos meus olhos toda a performance criativa do tecladista, mas isto não resolveria completamente minhas pendências, porque ainda teria que reproduzir a sonoridade complexa de uma orquestra e coral.
Enquanto pensava em soluções, resolvi pesquisar partituras na internet, e até mesmo em lojas físicas (sim, ainda existem, e tem uma muito boa na Rua Teodoro Sampaio), mas tudo o que encontrei foram arranjos simplificados e mal elaborados. Nem mesmo arquivos no formato midi encontrei bons materiais. Em outras palavras, se eu quisesse realmente reproduzir fielmente os teclados das músicas teria de arregaçar as mangas e trabalhar nas transcrições. O mesmo, concluí, vale para a orquestra e o coral. Uma solução é trabalhar com sequenciações, isto é, gravar as partes orquestrais em estúdio para reprodução ao vivo. Neste caso, é claro, a solução é trabalhar com um DAW (digital audio workstation) como o Bitwig, o Studio One, o Ableton Live, o Propellerhead Reason, o Pro Tools, etc... Quanto aos instrumentos virtuais, os VSTI's, tinha fixo em minha mente a idéia que não conseguiria obter qualidade aceitável. Estava engando, claro. Com efeito, fiquei afastado da música por mais de quinze anos, a partir de meados da década de 1990, e quando retornei a fazer música no final da década de 2000, não tinha acompanhado a evolução dos instrumentos virtuais, e entendia que eles ainda eram primitivos e não exprimiam a naturalidade que eu precisava. De qualquer modo, resolvi pesquisar o que a indústria da música tinha criado de novo nesta área, e me surpreendi. Encontrei verdadeiras orquestras a partir de um simples click no computador, e não só isso, também corais fantásticos.
Ok! era possível reproduzir a orquestração e coral de "Viagem ao Centro da Terra" com a tecnologia digital.
Tracei, pois, o seguinte plano, a ser executado nesta ordem: (a) deveria transcrever para partitura as grades da orquestra e do coral, bem como dos teclados; (b) recriar a sonoridade da orquestra e do coral utilizado um sequenciador (DAW) e instrumentos virtuais, e para tanto, elegi o Sonar X3 Producer e diversos VSTI's, principalmente o EWQL Symphonic Orchestra e o Symphonic Choirs; (c) estudar e aprender a tocar as partituras transcritas para teclados, e, finalmente; (d) reunir os músicos certos para formar a banda.
Demorei cerca de seis meses para finalizar as transcrições das partituras, incluindo músicas extras de outros álbuns do Wakeman, já pensando inclusive no encore, como "Catherine of Aragon", "Arthur", "Guinevere", inclusive música da banda Yes, que Wakeman integrou, como "Roundabout", etc... Semelhante interregno precisei para sequenciar as músicas, etapa que exigiu muito mais concentração, porque neste particular não basta distinguir os vários instrumentos da orquestra e suas linhas melódicas, harmônicas e rítmicas, mas se afigura necessário assinalar corretamente cada uma das enormes gamas de opções que o EWQL Symphonic Orchestra proporciona para cada instrumentos de sua lista. Em breve resumo, o que este instrumento virtual proporciona são gravações de instrumentos reais, e naturalmente não basta saber que se trata de um trompete em determinada parte da música, mais que isso, é necessário também eleger o melhor ângulo de posicionamento do microfone de gravação - palco (microfone posicionado na frente do palco), perto (microfone posicionado diretamente de frente para cada instrumento ou seção) ou público (microfone posicionado longe do palco) -, e ainda as articulações corretas, como, por exemplo, no campo dos ataques e durações, stacato, legato e sustain; ou no campo do stress e dinâmica, sforzando, crescendo, etc...
No âmbito dos estudos, consegui em menos tempo aprender a tocar as músicas desejadas, cerca de um mês.
Restava então reunir os músicos certos para este projeto. Sempre que penso em criar uma banda, o primeiro baterista que me vem à mente é o Cassiano MusicMan, não só pela qualidade técnica, mas também porque é um sujeito muito equilibrado e correto em atitudes, e, principalmente, repleto de boas idéias. Quanto ao coral, pensei nas cantoras que sempre estão comigo, muito boas e também honestas em tudo o que fazem, que são a Carina Assencio e a Reginal Migliore. A base, portanto, estava formada. Depois vieram Sandro Premmero no contrabaixo e voz, e Jonathas Queiroz na guitarra (violão) e voz, além de Aline Polisello na voz, piano e flauta. O papel de narrador coube ao ator Harley Nóbrega, o último a se juntar à trupe.
Este projeto é, sem dúvida, um dos mais importantes da minha vida, e, claro, a realização de um grande sonho.